OS
DIREITOS DO HOMEM NO AMANHECER DO SÉCULO XX
(Discurso
de Sua Santidade o Dalai Lama na Reunião de Paris da UNESCO - Comemoração do
50º Aniversário da Declaração Universal dos direitos do Homem)
O
aumento da preocupação a respeito das violações dos direitos humanos é muito
encorajadora. Não só nos dá uma perspectiva de alívio a muitos sofrimentos
individuais, como é uma indicação do desenvolvimento e do progresso da
humanidade. A preocupação pelas violações dos direitos humanos e o esforço
para proteger os direitos do homem representam um grande serviço aos povos quer
do presente quer das futuras gerações. Desde a Declaração Universal dos
Direitos do Homem, há cinquenta anos, por todo o lado as pessoas começaram a
compreender a grande importância e o valor dos direitos do homem.
A perspectiva de um Monge Budista
Não
sou um perito no domínio dos direitos do homem. Contudo, para um monge Budista,
como eu, os direitos de cada ser humano são muito preciosos e importantes.
Segundo a crença budista, cada ser sensível tem um espírito cuja natureza
fundamental é essencialmente pura e não poluída pelas distorções mentais.
Referimo-nos a essa natureza como sendo a semente da Iluminação. Desse ponto
de vista, todos os seres podem eventualmente alcançar a perfeição. Também
acreditamos que todos os aspectos negativos podem ser removidos do espírito,
dado que a sua natureza é pura. Quando a nossa atitude mental é positiva, as ações
negativas do corpo, da palavra e do espírito automaticamente cessam. Como todos
os seres sensíveis têm semelhante potencial, todos são iguais. Cada um tem o
direito de ser feliz e de vencer o sofrimento. O próprio Buda disse que na sua
Ordem, nem a raça nem a classe social são importantes. O que é importante é
a prática verdadeira de se viver a vida de uma maneira ética.
Enquanto praticantes Budistas, tentamos antes de mais melhorar a nossa conduta
do dia a dia. Só sobre essa base podemos começar a desenvolver as práticas do
treino mental e da sabedoria. Na minha prática diária de monge Budista tenho
de observar muitas regras, mas o tema fundamental de todas elas é o profundo
respeito e preocupação pelos direitos dos outros. Os principais votos
observados pelos monges e monjas plenamente ordenados incluem não tirar a vida
de outros seres, não roubar as suas posses e por aí adiante. Estas regras estão
explicitamente relacionadas com o profundo respeito pelos direitos dos outros. É
por esta razão que freqüentemente descrevo a essência do Budismo com sendo
algo como isto: se puderem, ajudem os outros seres sentientes; se não puderem,
pelos menos abstenham-se de lhes fazer mal. Isto revela um profundo respeito
pelos outros, pela própria vida e uma preocupação pelo bem estar dos outros.
Apesar de ser muito importante respeitar os direitos naturais dos outros,
tendemos a conduzir a nossa vida ao contrário. A razão é que nos falta amor e
compaixão. Por conseguinte, mesmo em relação à questão das violações dos
direitos humanos e à preocupação pelos direitos do homem, o ponto fulcral é
a prática da compaixão, do amor e do perdão. Muito freqüentemente, quando as
pessoas ouvem falar de amor e de compaixão,
têm o sentimento que isso se relaciona com práticas religiosas. Mas não
é necessariamente o caso. Em vez disso, é muito importante reconhecermos que a
compaixão e o amor são fundamentais nas relações entre os seres sentientes
em geral e os seres humanos em particular.
No início da nossa vida e de novo quando envelhecemos, apreciamos a ajuda e a
afeição dos outros. Infelizmente, entre estes dois períodos da nossa vida,
quando somos fortes e capazes de cuidar de nós, negligenciamos o valor da afeição
e da compaixão. Como a nossa própria vida começa e acaba com a necessidade da
afeição, não seria melhor praticarmos a compaixão e o amor pelos outros
enquanto somos fortes e capazes?
Apenas ganhamos amigos genuínos quando exprimimos sentimentos humanos sinceros,
quando exprimimos respeito pelos outros e preocupação pelos seus direitos.
Isto é o que experimentamos claramente na nossa vida quotidiana. Não é necessário
ler complicados tratados filosóficos nesse sentido. Na nossa vida de todos os
dias, estas coisas são uma realidade. Por conseguinte, a prática da compaixão,
a prática da sinceridade e do amor, são fontes essenciais para a nossa própria
felicidade e satisfação. Assim que desenvolvemos semelhante atitude altruísta,
desenvolvemos automaticamente a preocupação pelo sofrimento dos demais e
simultaneamente desenvolvemos a determinação de fazer algo para proteger os
direitos dos outros e para nos interessarmos pela sua sorte.
A
Universalidade dos Direitos do Homem
Os
Direitos do Homem são de interesse universal porque é inerente à natureza
humana ansiar pela liberdade, igualdade e dignidade e porque há o direito de as
efetivar. Quer queiramos ou não, todos nós nascemos neste mundo como parte de
uma grande família humana. Ricos ou pobres, educados ou não, pertencentes a
uma nação ou a outra, a uma ou a outra religião, aderindo a esta ou aquela
ideologia, em última análise cada um de nós é apenas um ser humano como
qualquer outro. Todos desejamos a felicidade
e nenhum de nós quer sofrer.
Se aceitarmos que os outros têm o mesmo direito que nós à paz e à
felicidade, não teremos a responsabilidade de ajudar os mais necessitados? A
aspiração pela democracia e pelo respeito dos direitos humanos fundamentais é
tão importante para os povos da África e da Ásia como para os da Europa ou
das Américas. Freqüentemente, contudo, são justamente os povos onde os
direitos humanos foram suprimidos que estão menos capacitados para falarem de
si. A responsabilidade cabe àqueles de nós que usufruem de tais liberdades.
Os abusos dos Direitos do Homem tomam muitas vezes por alvo os membros mais
dotados, dedicados e criativos da sociedade. Como resultado, o desenvolvimento
político, social, cultural e econômico de uma sociedade são obstruídos pelas
violações dos direitos humanos. Por conseguinte, a proteção desses direitos
e liberdades são imensamente importantes quer para os indivíduos afetados,
quer para o desenvolvimento da sociedade no seu todo.
Alguns governos entenderam que os padrões dos direitos humanos descritos na
Declaração Universal dos Direitos do Homem são os advogados pelo Ocidente e não
se aplicam à Ásia ou a outras partes do Terceiro Mundo, em função das
diferenças de cultura e de desenvolvimento social e econômico. Não partilho
deste ponto de vista e estou convencido de que a maioria das pessoas comuns tão
pouco o apoia. Creio que os princípios descritos na Declaração Universal dos
Direitos do Homem constituem como que uma lei natural que deveria ser seguida
por todos os povos e governos.
Além do mais não vejo qualquer contradição entre a necessidade de
desenvolvimento econômico e a necessidade de respeitar os direitos do homem. O
direito à liberdade de expressão e de associação são vitais para promover o
desenvolvimento econômico de um país. No Tibete, por exemplo, há inúmeros
exemplos de políticas econômicas inadequadas que foram implantadas e que
continuaram muito após terem demonstrado não produzirem benefícios, porque os
cidadãos e os agentes governamentais não puderam pronunciar-se contra elas.
Internacionalmente, a nossa rica diversidade de culturas e religiões deveria
ajudar a fortalecer os direitos humanos fundamentais em todas as comunidades. A
sublinhar esta diversidade estão princípios humanos básicos que nos interligam a todos nós como membros da mesma família humana. No entanto, a
mera manutenção das tradições nunca deveria justificar as violações dos
direitos humanos. Portanto, a discriminação contra pessoas de raças
diferentes, contra as mulheres ou contra os elos mais fracos da sociedade podem
ser tradicionais nalguns lugares, mas caso sejam incongruentes com direitos
humanos universalmente reconhecidos, essas formas de comportamento devem mudar.
O princípio universal da igualdade de todos os seres humanos tem de ser
precedente.
A
necessidade da Responsabilidade Universal
O
mundo está se tornando crescentemente interdependente e é por isso que
acredito firmemente na necessidade de se desenvolver um sentido de
responsabilidade universal. Precisamos pensar em termos globais, pois o
efeito das ações de uma nação são sentidos para muito além das suas
fronteiras. A aceitação de padrões de direitos humanos que nos obriguem
universalmente, tais como os da Declaração Universal dos Direitos do Homem e
da Convenção Internacional dos Direitos do Homem, é essencial no mundo de
hoje, cada vez mais pequeno. O respeito pelos direitos humanos fundamentais não
deve permanecer um ideal a ser realizado; antes, deve constituir a fundação
indispensável de todas as sociedades humanas.
Barreiras artificiais que dividiam nações e povos caíram nos últimos tempos.
O sucesso dos movimentos populares no desmantelar da divisão Leste-Oeste, que
polarizou o mundo inteiro durante décadas, foi fonte de grandes esperanças e
expectativas. Todavia, ainda permanece um enorme abismo no coração da família
humana. Com isto refiro-me à divisão Norte-Sul. Se formos sérios no nosso
comprometimento aos princípios fundamentais da igualdade, princípios que,
creio, estão no âmago do conceito dos direitos humanos, a disparidade econômica
atual não pode continuar a ser ignorada. Não basta meramente afirmar que todos
os seres humanos devem usufruir de igual dignidade. Isso tem de se traduzir em ações.
Temos a responsabilidade de encontrar vias para conseguir uma distribuição
mais eqüitativa dos recursos mundiais.
Estamos sendo testemunhas de um vibrante movimento popular para o avanço dos
direitos humanos e das liberdades democráticas no mundo. Este movimento tem de
tornar-se uma força moral ainda mais poderosa, de modo que mesmo os governos e
os exércitos mais obstaculares, sejam incapazes de suprimir. É justo e natural
que as nações, povos e indivíduos peçam o respeito dos seus direitos e
liberdades e que lutem para acabar com a repressão, o racismo, a exploração
econômica, a ocupação militar e as várias formas de colonialismo e dominação
estrangeira. Os governos deviam apoiar ativamente tais pedidos, em vez de apenas
os apoiarem verbalmente.
Acredito que a falta de compreensão daquilo que é a verdadeira causa da
felicidade é a principal razão pela qual as pessoas infligem sofrimento aos
outros. Algumas pessoas pensam que causando sofrimento aos outros podem
conseguir a sua própria felicidade ou que a sua felicidade própria é de tal
modo importante que a dor causada aos outros não tem significado. Contudo esta
visão é claramente redutora. Ninguém consegue realmente se beneficiar do mal
causado a um outro ser. Seja qual for o benefício imediato ganho às custas de
outros, ele é de pouca duração. A longo prazo, causar miséria aos outros e
usurpar a sua paz e felicidade, cria ao próprio ansiedade, medo e uma atitude
desconfiada. O desenvolvimento do amor e da compaixão pelos outros é essencial
para criarmos um mundo melhor e mais pacífico. Isto significa, naturalmente,
que temos de desenvolver um interesse pelos nossos pares, irmãos e irmãs, que
são menos afortunados do que nós. Por conseguinte, temos o dever moral de
ajudar e suportar todos aqueles que presentemente estão privados do exercício
dos direitos e liberdades que muitos de nós têm por garantidos.
Enquanto nos aproximamos do fim do século XX, parece-nos que o mundo está se
tornando uma comunidade. Juntos, temos sido confrontados com os graves problemas
da superpopulação, do declínio dos recursos naturais e da crise ambiental que
ameaçam a própria fundação da nossa existência neste planeta. Os direitos
do homem, a proteção do meio ambiente e uma maior igualdade social e econômica,
estão todos interligados. Acredito que para enfrentar os desafios do nosso
tempo, os seres humanos terão de desenvolver um maior sentido de
responsabilidade universal. Cada um de nós tem de aprender a trabalhar não só
para si, para a sua família ou nação, mas para o benefício de toda a
humanidade.
A responsabilidade universal é a chave para a sobrevivência humana. É a
melhor garantia para os direitos do homem e para a paz mundial.
http://www.cca.org.br/historias/historias_dalailama.html
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